Crônicas Campo-Belenses – JOÃO BELTRÃO E ZÉ FRANCISCO

Naquele tempo não havia asfalto nas estradas interioranas, e não se ouvia falar em caminhões ‘gaiola’. Os rebanhos bovinos de criadores e boiadeiros (negociantes de gado), da região de Campos Belos, Nordeste de Goiás, eram negociados e transportados à grandes centros consumidores, dentro e fora do estado.

Nemilson Vieira. Nem1000son@gmail.com
Nemilson Vieira. Nem1000son@gmail.com

 

As boiadas eram conduzidas a pequenas, médias e longas distâncias por comitivas de peões boiadeiros (vaqueiros); que, montados em resistentes animais (geralmente mulas e burros), as tocavam por estradas de rodagens geralmente muito precárias, até seu destino final.

Seu João Beltrão, cidadão Campo-belense, foi um desses peões boiadeiro à moda antiga, muito requisitado e atuante por lá, na lida e no manejo do gado bovino para os mais diversos rincões do Brasil, naquele sistema de logística; isso em meados dos anos sessenta e setenta, e início dos anos oitenta.

Sua labuta era intensa, sua agenda era apertada; corria contra o tempo para dar conta de tanta demanda. Mas, sem abrir mão da ‘paciência’, ferramenta imprescindível que garantia o seu sucesso nessa lida.

“O trabalho com o gado nas comitivas requer muito vigor físico…” A idade, n’uma certa altura do campeonato, não ajudava muito o Seu João: os sinais do cansaço batiam às portas. Sua resistência física minguava a cada dia… Mas ele ‘não dava o braço a torcer’: “Tenho bastante lenha para queimar”, dizia. E a sua prestação de serviço ainda era muito disputada nessas tarefas.

“Além de todos os contratempos, que enfrentavam nas estradas, como chuva, frio, calor esses homens passavam muito tempo fora de casa.” Então quando folgava um pouquinho ele aproveitava para curtir a família e os amigos.

Seo João Beltrão e companheiros na hora do 'rancho". Foto: Arquivo da família.
Seo João Beltrão e companheiros na hora do ‘rancho”. Foto: Arquivo da família.
João Beltrão, um dos mais renomados peão de boaideiro do nordeste goiano. Foto: Arquivo da família.
João Beltrão, um dos mais renomados peão de boiadeiro do nordeste goiano. Foto: Arquivo da família.
“As comitivas, seus condutores e peões boiadeiros sempre estiveram ligados a pecuária, desde os tempos remotos até a época em que a bovinocultura se encontrava em franco desenvolvimento, interligando regiões do Mato Grosso com os estados de São Paulo, Goiás e Minas Gerais...” http://www.cih.uem.br/anais/2013/trabalhos/139_trabalho.pdf
“As comitivas, seus condutores e peões boiadeiros sempre estiveram ligados a pecuária, desde os tempos remotos até a época em que a bovinocultura se encontrava em franco desenvolvimento, interligando regiões do Mato Grosso com os estados de São Paulo, Goiás e Minas Gerais…”.            http://www.cih.uem.br/anais/2013/trabalhos/139_trabalho.pdf

Com a competência de um exímio ponteiro – peão experiente e conhecedor das estradas, que vai à frente tocando berrante, nos momentos apropriados, para atrair, estimular a marcha ou acalmar o gado e dar sinais para os demais peões – Conduzia suas boiadas com pulso forte e maestria, para onde quer que fosse o destino das mesmas; apesar da dureza do serviço, aquilo

chegava a ser um entretenimento para ele: pois, tinha muito prazer no que fazia.

João Beltrão sempre liderava essas comitivas nas empreitadas que fazia, e enchia os olhos de seus contratantes e subordinados: pelo seu profissionalismo, habilidade, companheirismo e carisma… Um líder nato por excelência nessa atividade.

Quase toda a sua vida fora dedicada a essa nobre missão. Sempre com muito esmero. Desse labor, tirou o necessário para manter sua família e educar os filhos. E deixou um grande legado de integridade, honradez e garra; que até hoje orgulha os seus entes queridos e a sociedade em que viveu.

O gado era conferido por ele mesmo, Seu João, no início e final de cada jornada; geralmente fazia-se num curral ou numa passagem de uma cancela, onde, se posicionava num ponto estratégico, e na medida em que o rebanho passava, a contagem era feita.

Não usava qualquer tipo de instrumentos de cálculos para essa conferência, a não ser a memória. Essa, não falhava tão facilmente. E nunca se ouviu dizer que ele errasse alguma vez, essas continhas bobas.

Não sei anteriormente, mas, seu João, no final de sua carreira, quando seus cabelos já estavam como lã de algodão; gostava de um golinho, daquelas que o passarinho não bebe, geralmente com uma mistura qualquer: uma semente de sucupira, uma casca de imburana ou, de um jatobá; um budim (uma espécie de capim somente encontrado nas várzeas por lá, que, uma vez agregado na cachaça libera sabor e aroma agradável ao produto), coisas assim; segundo ele, para atenuar o veneno do álcool; mas, costumava dizer: “O homem precisa ter um pouco de álcool no corpo…”.

Em algumas ocasiões ele passava dos limites nesses aperitivos: um dia, o vendo sem condições nenhuma de retornar sozinho à sua residência, fiquei bastante compadecido: com todo carinho e esforço do mundo o ergui do chão e o coloquei no carro e o levei embora para sua casa. Afinal de contas ‘amigos é para essas horas’. Quase apanhei dessa vez! Não é preciso falar de quem, para não alongar ainda mais este conto.

Nunca mais pude praticar esse tipo de caridade: por causa dessa traumática experiência.

Em sua lida de gado Seu João, contava com bons peões; e dentre eles o Zé Francisco, era o que mais se destacava da turma: pela sua disposição e destreza, força, bravura… Sujeito moço e destemido, boa praça; com ele não tinha tempo ruim. ‘Era pau pra toda obra’ como se dizem. Seu ‘braço direito’ na labuta diária com o gado. Muito amigos: onde se via um, o outro estava por perto. Adoravam o bar do tio Elias, para ‘queimar o dente’, dá umas bochechadas, jogar uma sobrinha para o Santo e prosear com os companheiros.

E lá iam eles para mais um fim de mundo; desta vez, com destino a Barretos, Sudeste do Brasil, mais ou menos mil quilômetros de distância; onde Seu João Beltrão, sua comitiva, e cento e noventa e cinco bois marchavam exprimidos nos corredores das estradas, num ritmo frenético. Teriam que chegar ao destino final, sem muita perda de tempo. Quanto mais tempo gastassem menos lucro teriam. “O gado gordo anda mais rápido…”.

Chegando próximo ao destino, num dos muitos fins de jornadas, ao contar o gado, a conta não fechava; faltava um boi! Seu João, com o seu traquejo e percepção, não repetiu essa contagem. Soube imediatamente qual era a reis que não estava presente na manada.

A partir de então, o seu propósito foi o de não mais seguir a viagem no dia seguinte, enquanto não encontrasse o tal ‘boi arribado’. E assim o fez.

Na mesma tarde chamou o Zé Francisco, que naquele dia atuava como um dos ‘rebatedores’, “peões que cercam o gado, impedindo que se dispersem”, e que, havia falhado feio nessa última jornada: ao deixar passar despercebidamente dos seus olhos, as artimanhas daquele garrote fugidio.

Disse a ele que voltasse por cima do rastro, até a fazenda de Mané Zé, onde viu o novilho pela última vez; e lhe deu todas as características do bicho.

Antes da conclusão das ordens do chefe, já subia ao céu a poeira vermelha, dos cascos do burro da cor de terra, do tal peão.

Daí, mais um motivo para não se deslocarem do pouso em que estavam, enquanto o Zé não voltasse com o animal. Isso era uma norma muito observada no trabalho de condução de boiada.

Arroz carreteiro, feijão gordo, carne assada no ‘folhão’ (chapa), e  goiabas vermelhas, colhidas ao longo do trajeto, fora a janta e sobremesa daquela noite.

Dormiram em couros de bois, num galpão cedido por um fazendeiro da beira da estrada; pensando no companheiro que voltara naquela árdua missão, e numa possível continuação da marcha no dia seguinte.

Cinco e meia da manhã e todos da comitiva, já estavam de pé. E nenhuma novidade do colega até aquele momento.

Depois do café coado (usando-se a técnica de adicionar brasas, sobre o pó em água fervendo), o dia já se exibia lindamente e os raios solar, saudava a vida campestre.

À frente do galpão onde estavam, descortinava-se uma planície a sumir de vista, e no plano inferior, montanhas azuladas se exibiam no horizonte; e não muito longe, a jusante de um relevo cárstico, próximo a um buritizal que indicava uma nascente de águas cristalinas, uma mamãe-ema ensinava seus filhotes a se aquecerem: abraçando o mundo com asas.

Mesmo diante de tanta beleza dos elementos paisagísticos os olhos daqueles homens viam a vida passar, sem muita graça, pela ausência do companheiro.

O experiente ponteiro – Seu João Beltrão -, vendo que o vaqueiro Zé Francisco não chegava, pressentiu algo estranho no ar; e não perdeu mais tempo: chamou Rodolfo, o ‘culatreiro’, que trabalhava à retaguarda da boiada; e o responsabilizou sobre a administração do rebanho naquele pouso. E partiu sozinho, nos passos do seu admirável colaborador.

Depois de cavalgar quase o dia inteiro, sentiu o frescor da noite e uma brisa suave assoprava seu corpo cansado e seu rosto abatido, pela preocupação; e exalava no ar um cheiro agradável que vinha de um pequizeiro, carregadinho de flores, à beira do caminho.

Chegou à fazenda, onde haviam pernoitado na penúltima jornada; e  nenhuma notícia obtivera, sobre o motivo da sua procura.

A esperança de encontrar o amigo e o boi roceiro sofria golpes constantes e não era mais a mesma. Estava decidido a voltar, desse ponto de apoio.

No dia seguinte, agradeceu a bondade do Seu Zé, o morador que sempre o acolheu calorosamente; ajeitou seu chapéu de panamá de abas largas na cabeça, ajustou o freio e o bridão, organizou o pelego de lã de carneiro na cela, e o laço de couro-cru feito por ele, próximo a anca do animal, e montou-se.

Antes de dar partida, fez o pelo sinal três vezes, beijando o dedo polegar direito; pedia a proteção de Deus e de Nossa Senhora Desatadora dos Nós. “Mãe que jamais deixa de vir em socorro de um filho aflito…”. Acertou o burrão na estrada (no caminho de volta), e cortava o chão num passo picado.

Seu João não se descuidava um só instante, e estava atento em tudo que pudesse levá-lo ao seu objetivo maior: encontrar o Zé Francisco. E, para isso, qualquer informação, vestígio, ou movimento na paisagem seria de muita importância naquele momento.

Seu relógio registrava quase uma hora da tarde e a fome não sabia mais esperar; tirou do alforje uma porção de paçoca de carne de sol, feita no pilão com farinha sertaneja, e seguia entretendo o estomago.

Logo adiante pegou um atalho num trilho, para beber um gole d’água fresca num riozinho próximo a uma tapera abandonada; seu burro, com jeitão de manso, repentinamente saltou para um dos lados, bruscamente, quase o derrubando!

Insistiu em seguir, mas o animal só pensava em empacar, nunca havia feito aquilo antes. Olhou do seu lado direito e viu um eito de capim-jaraguá, acamado; e no final da maçaroca, avistou uma cisterna velha desativada. Então, a fixa caiu!… E a luz no fim do túnel deu as caras!

Desceu do animal, e o amarrou numa cerca velha de arame farpado que margeava o trilho; pois seu burro insistia em não aproximar-se daquele cenário.

Balançando a cabeça num gesto negativo balbuciava umas palavras de si para si:

– “Nossa Senhora!… Agora, eu vi a porca mal capada!… Jesus amado!…”. E já se sentia culpado pela tragédia. É sempre assim.

Segundo o próprio Zé Francisco, depois de cavalgar o restante da tarde do dia em que saiu naquela árdua tarefa, por cerrados, campos e valados; na “Hora do Ângelo” (seis horas da tarde) avistou o boi. Que ao vê-lo, tratou logo de sair de fininho: escorregando que nem quiabo, fingindo de égua.

E deu-me o resumo do relatório do acontecimento: “Com tanta raiva que eu tava daquele boi… quando o avistei, apertei as esporas no burro, e partimos pra cima do bicho; eu queria mesmo era dar um bom vexame nele, uma boa esfrega; queria mostrar àquele filho d’uma vaca, quem era eu. Corri atrás dele durante uns vinte minutos, com a cabeça do burro sobre sua anca; e a chibata comendo solto; o sol já estava indo dormir; quando inesperadamente!… Todos nós estávamos desacomodados, dentro daquele inferno…

Quem caiu primeiro na cisterna foi o novilho; quando firmei o freio, o burro me arremessou por cima de seu pescoço, e caí em cima do miserável, lá em baixo; não segurando a onda, o animal despencou por cima de mim.

Ficamos lá no pouco clarão do dia que ainda restava e posteriormente, na muita escuridão da noite. Com fome, sede, frio e, sem poder dormir; naquela arrumação toda no fundo do poço, literalmente. Como ‘um peixe dentro d’água sem oxigênio tendo que subir pra respirar’. Até morrerem todos, menos eu.”

O boi quebrou o pescoço, o burro, também. Foram salvos além do Zé Francisco, o arreio do animal, as picanhas e os coxões – mole do boi; para o churrasco com os companheiros, no restante da viagem, à Terra da Garoa.

Nemilson Vieira  é Técnico de Enfermagem, Micro Empreendedor Individual, titular da cadeira n° 03 da Academia Nevense de Letras Ciências e Artes (ANELCA), no seguimento literário; Agente e Gestor Ambiental; atualmente, é Conselheiro Municipal de Cultura de Ribeirão das Neves – MG.  

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